domingo, 21 de novembro de 2010

História preta e branca

Numa folha de papel meus olhares infames voam, voam.
Desenham a solidão debaixo da chuva, debaixo do medo.
E trazem vagas lembranças de todos os meus dias vazios.
Que contornei procurando outros capotes quentes de frio.

Acordarei amanhã, uma visão vaga na janela, e verei amarelo.
Um céu pintado de todas as cores do universo.
Tantas pessoas dançando e amando amar o que chamam de vida.
Abrindo o caderno e chorando uma história colorida.

Diante de toda a beleza que diz melhorar tudo com o que traz.
Pensamentos que giram, rodopiam como gaivotas de papel, me tonteando.
E busco a fuga momentânea num copo cheio de nada.
E busco a fuga eterna abrindo a mente pro que me mata.

Texto escrito por Aghata Miranda em novembro de 2010.

Levante-se

Omito.
Limito.
Preocupo.
Desocupo.

Tento escrever.
Não consigo.
Tento esquecer.
Tento de novo.

Desato.
Te bato.
Por dentro.
Sem dó.

Te rasgo.
O peito.
No marasmo.
Bem feito.

Tento passar.
Não posso.
Tento então apressar.
Tento tentar.

Aí.
Aqui.
Em todo lugar.

Textículo escrito por Aghata Miranda em novembro de 2010.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Invenção (parte II)

_ Não consigo achar a pasta de dentes.

(pausa de alguns segundos)
(a procura continua)
(pausa de mais alguns segundos)

_ Não acho essa droga de pasta de dentes!

(mais uma pausa de segundos)

_ POR ACASO VOCÊ VIU A PASTA DE DENTES?!
_ Sim, está dentro do pote de pastas de dentes...
_ Nós temos um pote para pastas de dentes?
_ Uma vez comprei um pote de pastas de dentes porque achei que ficaria mais fácil de você encontrar.
_ Eu nem sabia desse pote idiota.
_ O comprei tem umas duas semanas e você não tinha notado? Você pega pasta de dentes nele todos os dias e não tinha reparado ainda? No que você repara afinal?

(pequena pausa)

_ Vamos mesmo discutir por pasta de dentes?
_ Esta não é a questão, a questão é o que você nota por aqui. Por acaso você me havia reparado? Porque eu estou aqui tem uns dois anos, você me pega todos os dias e, ainda não tinha visto?
_ É claro que eu vejo você, para com isso.
_ O que mais você vê, me diz!
_ Eu vejo esse quadro, esse espelho, esse lençol espalhado na cama, esse pote de pastas de dentes foi a única coisa que eu não vi por aqui!
_ Você não me vê.

(longa pausa)

_ Não irei ficar alimentando essa discussão infantil.
_ Infantil?
_ Sim, infantil.
_ Por que infantil? Só porque eu tenho razão?
_ Essa não é a questão.
_ Olha já me cansei sabia, estou com esse cansaço há dois anos.
_ Eu ainda não havia notado.

(pequena pausa)

_ Você ainda sente alguma coisa por mim?
_ Ontem à noite lhe mostrei isso, você não reparou?
_ Me diz!
_ Você não consegue ver?
_ Me diz!
_ Não.

(longa pausa, passos pesados até o sofá)

_ Por que você faz isso? Por que não acaba logo de uma vez com esse cansaço, com essa rotina, com esse pote de pasta de dentes? Por que não some logo e assim não importa mais se eu reparo ou não? Por que você não consegue acreditar no que te mostro e tem necessidade de ouvir? Não tens fé? Em mim! Não tem fé em mim? Ora essa! Acha que estive aqui por dois anos apenas concordando com o que falaras por causa de noites? Acha mesmo que ligo a televisão e me deito ao seu lado por interesse? Esperando que algo venha até a mim? Algo caia do céu? Acha que estive aqui por não ter mais nenhum lugar onde estar? Por não ter um pote de pasta de dentes? Você que não me vira, que não me notara, que não me conhece!

(longa pausa, lágrimas)

_ Me desculpa.
_ Eu te amo.

(pequena pausa)

_ Eu jamais faria nada disso, você sabe...
_ Me desculpa.
_ Eu te amo.

(pausa de dois minutos e treze segundos)

_ Sabe, não sei o que faria sem nada disso.
_ Como assim?
_ Sem você, sem discussões infantis, sem potes de pasta de dentes...

(pequenos risos)

_ Como faz piada dessa situação? Me encontro em prantos.
_ Faço piada de tudo.
_ Faz piada do nosso amor.
_ Acha isso ruim?
_ Não, amo tuas piadas.
_ Você me ama de verdade, é?
_ Amo, ora essa.
_ Faria qualquer coisa por mim.
_ Mas é claro que faria, ora essa!
_ Então, transfere todo seu dinheiro pra minha conta.
_ Acha mesmo que tem a ver com isso?
_ Não, só estava fazendo piada.

(sorrisos)

_ Que sorte eu tive de te encontrar, não?
_ Não.
_ Por que não concorda?
_ Um dia eu aprendi que sorte vai e vem, feito vento.
_ Aprendeu isso com quem?
_ Um filósofo...

(...)

_ Um mendigo.
_ Como ele conseguiu te ensinar isso, afinal?
_ Simples: ele pegou uma moeda de dez centavos do chão ao mesmo tempo que o sanduíche dele caiu pelo esgoto.
_ Entendi.
_ Mesmo?
_ Eu acho que sim, quis dizer que ao mesmo tempo que temos sorte ali, dum jeito, a perdemos aqui, doutro jeito?
_ Não quis dizer nada, eu vi.
_ E tirou conclusões, apenas isto.
_ Do que mais é feita a vida se não de conclusões?
_ De amor.
_ E como você chegou aí?

(pequena pausa, sorriso de canto)

_ Uma conclusão.

(longa pausa, cada um para o seu lado)

_ Isso é uma besteira, sabia.
_ Isso o quê?
_ Medigos, sorte, pasta de dentes.
_ Amor também?
_ Amor não.
_ Por quê?
_ Ah não sei, só consigo ver o amor como algo a cima de tudo, absolutamente tudo.
_ Felicidade?
_ Amor traz.
_ Tristeza?
_ Amor traz.
_ Pasta de dentes?
_ Bom, isso o amor não traz, mas quando se ama pouco importam as pastas, não acha?
_ Não te amaria com dentes sujos!
_ Jura?
_ Apenas piadas.
_ Me amaria de qualquer jeito?
_ Qualquer um.
_ Até muito muito muito mal?
_ Qualquer um.
_ Sem feitiços?
_ Você sabe.

_ Na verdade não, mas estou gostando.
_ Vamos lá então.
_ Me ama tanto assim, é?
_ É.
_ Por quê?
_ Não sei... eu cheguei à essa conclusão.

(pausa de quarenta e dois segundos)

_ Você já chegou à conclusão do que seria o amor?
_ Amar é dar à alguém a permissão para te matar.
_ Posso te matar?
_ Claro que não!

(pausa de)

_ Ué, você disse que me ama.
_ Mas essa não é a questão.
_ Lá vem você com isso de questão...
_ Você não pode me matar, porque não conseguiria.
_ Ora essa, te mataria num piscar de olhos.
_ Não conseguiria.

(pausa)

_ Amar então é deixar alguém lhe matar, mesmo que esse alguém não consiga?
_ Isso é amar e ser amado.
_ Então, você está dizendo que todas as pessoas que eu deixaria que me matassem eu amo? É isso que o amor significa? Permitir que alguém te mate?
_ Basicamente.

(longa pausa de olhares fixos)

_ Eu te amo.

Texto escrito por Aghata Miranda em novembro de 2010.